ASSOMBRAÇÕES DO
RECIFE VELHO>Matérias
Folha de São Paulo
Sábado, 15 outubro de 2005
Ilustrada
Crítica
Sergio Salvia Coelho
Lírico e cômico , texto transborda sensações
Inaugurando um novo espaço cultural no Casarão do Belvedere,
“Assombrações do Recife Velho” se insere em um gênero já consagrado no
teatro paulistano: o do teatro itinerante, que troca a distância entre
palco e platéia por passeios por patrimônios históricos reabilitados,
exigindo do ator, ao mesmo tempo, concentração e despojamento.
Desde o início recebida pelos “contadores de causos”, a platéia enche os
ouvidos com o sotaque e com o ritmo recifense e logo sentirá o cheiro do
cachimbo do pai-de-santo e o perfume da viúva visitada pelo morto,
provará o doce de banana feito em tempo real e pressentirá entidades na
sombras dos candeeiros.
Amparado por uma imprescindível Bolsa Vitae, o diretor Newton Moreno se
aprofundou, com o apoio da própria Fundação Gilberto Freyre, na história
riquíssima da miscigenação brasileira : entes africanos convivem com
fantasmas europeus, lobisomens e dibuks assombram as mesmas vielas. Mais
que folclóricos, os “causos” do livro homônimo de Freyre revelam a
sexualidade e os preconceitos do brasileiro, dando continuidade à busca
de “Agreste” , o texto consagrado de Moreno.
Desta vez, porém, não há o árido e transcendente rigor da direção de
Marcio Aurélio. Dirigido pelo próprio autor, “Assombrações ...” tem o
tom das duas outras montagens do seu grupo Os Fofos Encenam ( “A Mulher
do Trem” e “Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada” ) , exibidas no mesmo
espaço, em que o humor é o instrumento principal do questionamento.
O grande carisma de Paulo de Pontes remete ao de Marco Nanini, recifense
como ele, assim como a delicada Luciana Lyra e a sensual Elaine
Kauffman. A sensualidade também é garantida por José Roberto Jardim e
Eduardo Reyes , mas domina o quase escracho de Marcelo Andrade, o
despojamento de Fernando Neves, Carlos Ataíde e Kátia Daher.
Salta aos olhos a grande versatilidade de Alex Gruli, que , ao passar do
perplexo pesquisador de fora para o caquético morador local, mostra uma
técnica que lembra o “Café com Queijo’ do grupo Lume .
Entre o que se conta e o modo de conta-lo, Moreno mostra-se um
dramaturgo seguro. Enquanto diretor, porém, não resiste a um excesso de
idéias que acabam diluindo a proposta.
No episódio em que a tortura política é evocada, ao trocar a delicada
integração com o público ( que faz desta montagem uma irmã da antológica
“Hysteria”, do grupo XIX) pela imagem arquetípica da santa torturada
(estratégia que é marca registrada do Teatro da Vertigem, de Antonio
Araújo ) , o espetáculo destoa e , ao voltar ao tom original, acaba
parecendo redundante. Porém, mesmo ganhando com um enxugamento, as duas
horas de espetáculo transbordam de sensações inesquecíveis : Jesus
menino brinca com o demônio nas ruas de Recife.
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