ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO>Matérias

O Estado de São Paulo
Sábado 17 de setembro de 2005

Caderno 2
Crítica

Mariângela Alves de Lima


A força cênica da tradição oral
Espetáculo baseado em Gilberto Freyre celebra o imaginário popular, sem melancolias saudosistas .


As ciências sociais foram para Gilberto Freyre área privilegiada de estudo. Mas há na obra, além das interpretações analíticas, o registro de uma fruição estética da cultura de um modo geral, e pernambucana em particular, a que deu o nome de “empatia” . Em texto sobre a capital do seu Estado referiu-se “ao Recife das revoluções, dos crimes, das assombrações, dos cadáveres de padres ideólogos rolando pelo chão, dos fantasmas de moças nuas aparecendo a frades devassos, dos papa-figos pegando meninos, dos maridos ciumentos esfaqueando mulheres, das serenatas de rapazes pelo Capibaribe nas noites de lua – todo esse Recife romântico, dramático, mal assombrado, passa despercebido ao turista”. É essa espécie de admiração pelo exaltado imaginário recifense que anima a adaptação feita por Newton Moreno das crônicas enfeixadas sob o título de “Assombrações do Recife Velho” .


Histórias variadas, recolhidas da tradição oral e, portanto, sem data de nascimento, mesclam-se a um fio dramático contemporâneo. Para o pesquisador de hoje, personagem desta adaptação, a fonte é cada vez mais inacessível. Quem sabe, quem ainda poderia transmitir esse patrimônio imaterial, está perdendo a memória. O fascínio dos meios de comunicação de massa, instaurando de modo dominador outras narrativas, prevalece sobre os temas e formalizações da transmissão oral.


Mas essa é uma constatação do presente que o espetáculo apresentado pelo grupo Os Fofos Encenam registra sem se deixar contaminar pela melancolia saudosista. O que interessa ao grupo dirigido pelo autor é a categoria de “ romântico” , com a sua dupla mensagem de distorção e emotividade. Sob as histórias de fantasmas há um fundo histórico que a imaginação coletiva enfeita e deforma e, por essa razão, os narradores populares são os verdadeiros heróis do espetáculo. São os homens pobres da cidade recebendo os espectadores, envolvendo-os fisicamente e seduzindo para que se tornem permeáveis aos encantos de uma narrativa supra-histórica . O desenho do espetáculo repousa sobre a capacidade de sedução das personagens e, em seguida, sobre o poder de transformar o ambiente em espaço dotado de atmosfera dramática. Cada história, tendo um narrador com características diferentes, tem o seu próprio estilo. A menina moça que interpela os passantes fincada na janela de casa é a narradora de uma manifestação benigna e afetuosa de fantasmagórica materna. Cabe-lhe atrair e convidar os espectadores para ingressar no território das histórias mais cabeludas. Assombrações maliciosas e erotizadas adquirem ritmo farsesco e reserva-se o grotesco e horripilante para revestir narrativas cujo ponto de origem é a crueldade dos senhores de escravos.


Em cada cena dessa antologia há um sentimento dominante, alguma coisa que permanece simbolizada na narrativa como expressão da experiência coletiva do presente. Há, sem dúvida, a nostalgia do passado, característica das cidades antigas cuja arquitetura ainda não foi inteiramente destruída e permite, portanto, o conhecimento de diferentes etapas históricas.


Também transparecem como motivos inconscientes o ressentimento racial e de classe e a reivindicação de uma sensualidade pagã secularmente reprimida pelo catolicismo. Não falta nessa recolha o ânimo literário que os pernambucanos manisfestaram por meio de revoltas contra diferentes formas de opressão. Frei Caneca é a um só tempo realidade e mito do inconformismo e a essa figura exemplar é dedicada uma cena que se dispensam as tintas evocativas. Nesse caso, a formalização da cena tem o compasso ágil e o ritmo surdo da música contemporânea. Trata-se de um “ valor em movimento” ressoando nas agitações ousadas e inteligentíssimas do mangue beat. A figuração do narrador original eliminada na adaptação de Newton Moreno, é sublimada na utilização da metodologia de Gilberto Freyre.


Quase todo o espetáculo se beneficia do lugar de exibição, uma antiga moradia restaurada no ponto certo, ou seja, sem que a intervenção apague inteiramente as marcas do tempo sobre o prédio. Desse modo, as assombrações se deslocam por um edifício vagamente antigo, com sinais de desgaste, mas encravado entre arranha-céus e viadutos. É um espaço que conjuga duas fronteiras temporais e o sentido dessa justaposição é também o alvo do trabalho cênico. Único episódio sem resolução adequada é aquele em que a família migrante dialoga com o patriarca. Como dramaturgia a cena é excepcional: econômica, sutil e empática, exatamente porque realiza o sentimento de desterro dos que não sabem falar muito. No entanto tem um tratamento brumoso, em tom sentimental e mal definido, porque as duas pontas da interlocução são igualmente arcaicas. Falta a esse episódio a tradução cênica desse objeto em positivo que é o vulgaríssimo orelhão.