ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO>Matérias

 

Revista Bravo
Outubro de 2005

Crítica

Kil Abreu


A RESSUREIÇÃO DA NARRATIVA
Baseado na obra de Gilberto Freure, Newton Moreno compõe em Assombrações do Recife Velho uma visão afetiva sobre a tradição e a força da oralidade


As histórias colhidas por Gilberto Freyre para o livro agora adaptado ao teatro relatam um tempo em que na cidade do Recife a vida não chegava pelos jornais, mas “na língua certa do povo” , como disse Manuel Bandeira. Assombrações do Recife Velho inspira-se na consciência funda de brasilidade que notabilizou o autor de Casa Grande & Senzala . Nas crônicas, Freyre recria aspectos da história íntima da cidade, orientado pela perspectiva fantástica da convivência entre vivos e mortos.
O dramaturgo Newton Moreno, também pernambucano, vem já de outra experiência excelente com o uso da narrativa no teatro: a peça Agreste, que guarda em comum com Assombrações... o gosto pela oralidade , personificado nos contadores de causos. Nesta versão, dirigida pelo próprio Moreno, os mortos corrigem os vícios da sociedade que vêm assombrar e reconstituem, no plano sobrenatural, os impasses da vida real. Escravos voltam do além para fazer cobranças aos seus senhores, e o colonizador europeu é o diabo ruivo, que vem do mar e se satisfaz nas carnes das índias e negras.
A encenação empenha-se na tarefa de fazer coincidir tema e forma. Centra força nos relatos, enquanto investiga justamente a morte da narrativa. Não é à toa que o elenco – formado pelos atores do grupo Os Fofos Encenam – tem seus melhores momentos quando se inspira na atuação livre e direta dos artistas de feira e do teatro popular, fazendo valer o jogo aberto com a platéia. Se os desempenhos não se nivelam no mesmo ponto alto alcançado por alguns intérpretes em particular ( como Paulo de Pontes, que acende com energia admirável a militância de um Frei Caneca ressuscitado), o grupo, visto no conjunto garante a vitalidade da comunicação com o público.
A montagem totaliza-se como crônica de uma cidade desencantada nos percalços de outras aparições , vindas com o urbanismo e as especializações de toda ordem, que sepultaram aquele sentido comunitário da vida, resguardado no espaço social da narração. O mesmo espaço que agora só pode ser mimetizado mediante as estilizações artísticas, como esta que o espetáculo opera. Se há algo de regressivo e de nostálgico nesse exame que se lança ao passado, há também fundamentalmente a preocupação com um tema presente e vivo: o esgarçamento dos vínculos – central em todas as manifestações da arte moderna - , que as vozes distantes destas Assombrações... vêm nos lembrar .