AGRESTE>Matérias

 

Jornal do Brasil - Caderno B
São Paulo, 24 de janeiro de 2004

Homossexualidade e traição na cena teatral de São Paulo
Em `Agreste`, tema do homoerotismo vira fábula nordestina. Em `Senhoras e senhores`, mágoa entre casais vira comédia .


A poesia cênica de um teatro regionalista com inflexão homoerótica se desenha em Agreste, que estreou semana passada no Teatro Cacilda Becker, no bairro da Lapa, em São Paulo, como o elemento impulsionador da narrativa. O autor pernambucano Newton Moreno mantém a integridade de seu universo dramatúrgico neste texto em que matizes da cultura nordestina (imaginário popular, oralidade, literatura) permeiam o contato afetivo através de zonas obscuras e dubiedades. Newton Moreno retoma, ainda que em escala bem menos reveladora, a dramaturgia de conotação homossexual, que já foi vista no rio, há dois anos, em Dentro , surpreendente transposição poética da solidão dos desejos.

Agreste é quase uma fábula em que os processsos narrativos se desmontam nas vozes dos contadores, eles próprios personagens do “causo” que expõem. Na aridez da paisagem, geográfica e humana, o encontro amoroso é feito de silêncio e medo, e a fuga deste homem e desta mulher para o sertão profundo é a viagem definitiva até a tragédia. A aproximação receosa e prevenida dos dois é lenta como o tempo em que viviam, sempre separados por uma cerca que precisou ser rompida para que se cumprisse o inevitabilidade de um desígnio, já “que tinha alguma coisa no amor deles que não devia acontecer, mas aconteceu”.

A aspereza da atmosfera se estabelece na narrativa seca e despojada que descreve os movimentos tímidos de cada um deles até alcançar o outro, como introdução àquilo que se desenrola depois da partida para o sertão. Esta primeira parte, um monólogo de força poética, projeta, simultaneamente, a secura física do sertão e a crueza na manifestação dos sentimentos. Há na aridez que perpassa essa cena inicial lembranças de Graciliano Ramos ou de João Cabral de Melo Neto, dispersas num lirismo atritante.

Depois da fuga, o texto adquire o caráter de fábula nordestina, com a incorporação do meio social e da galeria de tipos (o padre, o delegado, os vizinhos) que fornecem contexto regional à trama. Em alguns momentos, essa segunda parte pode parecer um tanto marcada pela caracterização nordestina, tangenciando as referências mais persistentes desse universo. Mas Agreste se afasta desse contexto, pela forma lírica no tratamento do regional e pelo espaço emocional em que transcorre a história.

A direção de Márcio Aurélio é decisiva na ampliação da cena poética. Não só pelas sutis impressões oníricas que impões à encenação mas pelo enxugamento de citações. Originalmente um monólogo, Agreste se estrutura em planos narrativos que seriam interpretados, segundo a rubrica, por um ator-contador e por outros atores, que criam uma “partitura física” .Márcio Aurélio rompe com esta divisão – há sempre o perigo dessa “partitura física” ficar como ilustração dançada do monólogo-, trabalhando efetivamente, com os níveis narrativos e distribuindo as cenas por dois atores.

É essa dupla de atores que monta e desmonta o cenário e as instâncias da fabulação, integrando a universalidade do prólogo e o regionalismo da segunda parte. O diretor encontrou o ponto de flexão da sua montagem no uso do sotaque em contraponto à fala poética. Num despojamento de gestos e de adereços, a primeira parte é desenhada pela imobilidade dos atores, de frente para a platéia, permitindo, deste modo, que esta se envolva, quase unicamente pela audição, com a beleza poética do texto. Nas cenas da fábula sertaneja, varais e lençóis, candeeiros e objetos ministurizados se transfiguram em telas para projetar o mundo rural e em circo mambembe para conter a representação .

Paulo Marcello e João Carlos Andreazza formam a dupla de intérpretes que, como prestidigitadores, manipula a cena em permanente mutação. Quando estáticos, dividem a aspereza poética e silenciam os movimentos para ecoar sonoridades. Quando figuras regionais, umedecem a atuação como os personagens que “põem filhos para aguar, para crescer” . Interpretações de fino rigor e delicados contornos contribuem para que Agreste revigore a cena poética. Um belo espetáculo.