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Gazeta Mercantil – Teatro
São Paulo, 23 de janeiro de 2004

No tom das lendas antigas
“Agreste”, nova peça de Newton Moreno , é simplesmente imperdível



É uma pequena obra-prima. Só começando assim. A companhia Razões Inversas acaba de estrear “Agreste”, de Newton Moreno, no Teatro Cacilda Becker, que a nosso ver, é simplesmente imperdível. Quem encabeça esse grupo é um dos mais premiados diretores de teatro, Márcio Aurélio.

Para se ter uma idéia, ele recebeu prêmio Mambembe ( do Ministério da Cultura) num de seus primeiros trabalhos como profissional, “Lua de Cetim” , Alcides Nogueira. Além desse, recebeu dois Molière, que há algum tempo era oferecido pela Air France, um dos quais por “Pássaro do Poente”, de Carlos Alberto Sofredini, com o grupo Ponkan, outro por “Hamletmachine”, do alemão Heiner Muller, com Marilena Ansaldi.

Ganhou também prêmio da Associação Internacional de Críticos Teatrais (AICT) por divulgar o teatro brasileiro no exterior onde apresentou “A Bilha Quebrada” , de Dleist, e costuma dirigir os espetáculos do bailarino brasileiro Ismael Ivo. Por “Senhorita Else” , do austríaco Arthur Schnitzler, com Débora Duboc, levou o troféu da Associação Paulista de Críticos de Arte ( APCA) . Espero não ter esquecido nenhum outro no meio do caminho, que leva ao mais recente, um Prêmio Shell (Shell do Brasil ) por “Pólvora e Poesia” , de Alcides Nogueira, com Leopoldo Pacheco e João Vitti.

Isso tudo foi mencionado para dizer que provavelmente foi sua grande e bem sucedida experiência teatral que lhe permitiu fazer um espetáculo tão fora dos conformes, com tanto êxito. Como se sabe, o teatro nasceu do diálogo – pois o texto de “Agreste” não tem nenhum diálogo a não ser narradores. Também não é um monólogo, pois os dois únicos personagens em cena são narradores, e embora não conversem um com o outro, mas com o público, nunca tratam de si próprios e sim de outras pessoas, como é próprio dos romances.

É um romance, uma história de amor, encenado como tal, sem adaptações. Foi escrita com talento surpreendente, inclusive por se tratar de um autor tão jovem, e , no entanto, capaz de escrever de modo tão poético. O texto faz lembrar lendas antigas, como se tivessem sido trazidas à tona depois de um mergulho no inconsciente coletivo. Graças ao trabalho irretocável dos dois atores – Paulo Marcello e João Carlos Andreazza – que conseguem dar vida aos protagonistas ausentes, bem como tocar profundamente a sensibilidade do público. Outra contravenção às ditas leis teatrais: o espetáculo inicia-se quase no escuro e só bem aos poucos é que os donos das vozes são verdadeiramente vistos. Mesmo assim, não fica monótono, de modo que se sente que o público está atento. Não é a primeira vez que Márcio Aurélio começa um espetáculo no escuro. Já usou esse recurso quando montou “ Fausto Zero” , a primeira versão de Goethe para a história de Fausto. Quem sabe por fazer um uso muito mais longo, não deu tão certo. Depois de algumas iluminações, deve ter decidido pesquisar a ausência de luz. Afinal, ele foi premiado como iluminador pelo infantil “Maria Borralheira”, dirigida por Vladimir Capela.

A cenografia de “Agreste” como de resto toda a montagem, é absolutamente singela. Utiliza velas e coisas simples cujo efeito é bem mágico, mágico como acontecia em “Fim de Jogo”, de Samuel Beckett, dirigido por Rubens Rusche, encenação que lhe valeu um prêmio de cenografia.

Como se vê, é um artista de muitos instrumentos, todos elaborados com a sua assinatura no caso de “Agreste”. Por isso mesmo, Márcio arrisca com bom gosto a primeira trilha sonora e os dois figurinos que se vê em cena. Pelo que foi dito, “Agreste” tem tudo para agradar a um público que não gosta de grandes sofisticações e também às pessoas mais exigentes que não vão ao teatro só para se divertir. Enfim, a nosso ver imperdível , como já foi dito.

“Doutora em teatro pela USP e professora da Unicamp”