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O Estado de São Paulo – Caderno 2
São Paulo, 23 de janeiro de 2004

CRÍTICA
Diretor reforça o trágico em `Agreste`
E o autor Newton Moreno segue trilha aberta por grandes autores como Ariano Suassuna



Há mais de meio século o teatro brasileiro elegeu a região do semi-árido nordestino como a paisagem predileta para ambientar o sentido do trágico. Lugar posto à margem da História, onde condições hostis à sobrevivência consomem a força vital da população, é , por essa razão, o cenário escolhido por artistas para sediar conflitos humanos universais e atemporais. Sob a aparente imobilidade da vida social regida por noções arcaicas de honra e dever agitam-se paixões exemplares. Em meio à escassez material é possível desenhar, em alto contraste, a aniquilação do homem por forças inelutáveis. Agreste trilha essa vereda pavimentada por grandes autores como Ariano Suassuna e Joaquim Cardoso e por dramaturgos de ressonância menor. Tal como seus ilustres predecessores, Newton Moreno faz com que sua narrativa seja uma condenação implícita ao atraso e ao exílio a que foram condenados os setanejos. Seus personagens estão fora do tempo porque foram esquecidas. Estão à mercê do obscurantismo porque vivem da mão para a boca, sem recursos para aprender alternativas, ponderar, decidir e transformar os valores que regem o comportamento da comunidade. No entanto, embora parte da circunstância, a ignorância e miséria não resumem , nesta peça, o interesse dramático.

Sendo um hábil contador de histórias o autor lega ao público a tarefa de distinguir o essencial do contingente. A narrativa, feita ao modo indireto do teatro épico , se inicia por meio de uma descrição cheia de detalhes sedutores da corte amorosa. Um casal de lavradores namora à distância , desenha lentamente os rituais silenciosos de mútua aceitação e, por fim, impreende uma fuga para formar, em uma zona rural remota, um lar pacífico e isolado. Toda a primeira parte da trama, precedendo o conflito trágico é arquitetada com deliberada simplicidade de vocabulário e sintaxe. Há o ritmo da hesitação, a magnetização lenta que ocorre entre os amantes, os percalços da fuga e, por fim, o recatado início da vida conjugal sob um teto comum. Em nada o casal se distingue de outros pares amorosos, exceto talvez pelo pudor dos que amam sem saber falar dos sentimentos. São essenciais para a primeira parte da narrativa a serenidade das imagens invocadas pela voz dos atores, a sugestão da rotina e a atmosfera que não é a explicitamente sensual, mas antes de aconchego satisfatório, que mantém o casal apartado dos vizinhos. Trata-se de uma reserva condizente com a história do par, que não se manifesta como ocultamento. Até que a morte os separe depois de mais de duas décadas de convivência marido e mulher vivem – tal é a perspectiva dos moradores – na boa paz dos que não fazem a si mesmos muitas perguntas.

A morte e os incidentes reveladores que a cercam transferem o protagonismo para a comunidade. Diante da diferença acende-se o estopim de uma fúria punitiva que o texto apresenta como uma espécie de fogo lento a espera de uma brisa propícia para se expandir. Desdobrando-se em personagens de traços caricatos como carpideiras e um capataz que representa a sentença do coronel, os atores tem a tarefa de configurar a histeria coletiva impulsionada em parte pela ignorância, mas também pela crueldade. Sem complacência, sem atenuar a caracterização por respeito à indigência material e espiritual dos envolvidos, o texto enfrenta a questão mais complexa da intolerância como um componente obscuro e recalcado de qualquer agrupamento social. Este talvez seja o aspecto mais perturbador dessa peça superficialmente ancorada na representação de uma sociedade arcaica. Por contágio, de um modo quase inconsciente, o grupo define contra a alteridade. Mobiliza-se para extirpa-la, cresce em dinamismo e energia quando encontra um pretexto para reafirmar um antigo código de conduta, Só quando vigia e pune a comunidade se fortalece e se torna sujeito da ação. Fora disso é vítima excluída do processo civilizatório. O auto-de-fé promovido pelos vizinhos do casal é , portanto, o seu momento afirmativo.

Sob a direção de Márcio Aurélio o espetáculo reforça o componente trágico que não depende de uma caracterização localista para se constituir em cena. As vozes dos atores-narradores são sóbrias e complementares. Há o tom mais grave e mais agudo, indicando o formato de cantata. As repetições e ressonâncias da primeira parte do texto são extraordinariamente bem feitas, controladas como se obedecessem a uma partitura. Ecoam sugerindo uma espécie de fundo infinito, e quase vemos a paisagem vasta, a perambulação solitária dos amantes e a mansidão com que se estabelecem e criam a sua rotina conjugal . Na segunda parte prevalece o grotesco, e , por essa razão , o espetáculo inclui algumas invenções caricatas. Mesmo as caricaturas são sóbrias, dosadas para sugerir a aliança produtiva entre malícia e crueldade.

Com essa composição bem articulada e dois intérpretes ( Paulo Marcello e João Carlos Andreazza) capazes de realizar a sugestão musical do texto não fariam falta os violinos da trilha sonora sublinhando o lirismo e a tragicidade.