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O Estado de São Paulo – Caderno 2
São Paulo, 16 de janeiro de 2004

Uma História de amor na aridez do setão
Dirigida por Márcio Aurélio , ´Agreste` evita o sentimentalismo num texto carregado de poesia

BETH NESPOLI

Se nada mudou radicalmente desde o ensaio realizado há três dias, um espetáculo primoroso inicia a temporada no Teatro Cacilda Becker: Agreste, texto de Newton Moreno dirigido por Márcio Aurélio com os atores Paulo Marcello e João Carlos Andreazza . A montagem reagrupa diretor e atores da Cia Razões Inversas, responsável por criações como Senhorita Else e Maligno Baal, o Associal. Ainda pouco conhecido como dramaturgo, Moreno é o autor de Dentro, um dos bons textos da 1a Mostra de Dramaturgia Contemporânea.

Pernambucano, o dramaturgo viveu na cidade do Recife até 22 anos. Atualmente com 35, trouxe o primeiro esboço de Agreste na bagagem de mudança para São Paulo. Depois dos elogios para o urbano Dentro, Moreno resolveu retomar o texto de cores regionais, uma cortante história de amor ambientada no sertão nordestino. No palco, tudo começa com os dois atores revezando-se numa narrativa delicada, cheia dê silêncios, de repetições, sobre no jogo amoroso – a lenta aproximação, com sutis avanços e recuos, que se estabelece entre um homem e uma mulher tímidos, rudes, toscos, no árido sertão nordestino.

Tudo é lento e profundo nos movimentos internos dos personagens , tudo é seco, escasso, árido, onde vivem – atmosfera pelanamente captada e recriada na encenação de Márcio Aurélio . Num dado momento , o casal ousa a aproximação física. Fogem então juntos para longe da terra natal e vão viver no sertão ainda mais profundo, num casabre ´construído´ pelos atores no palco . Ali começa a história desse casal, ora contada, ora vivenciada pelos atores que se revezam ainda na interpretação de outros moradores do povoado. Dito assim , parece simples. Mas tal história de amor traz surpresas, momentos de lirismo, outros de extrema crueldade e desemboca numa tragédia que tem origem no preconceito e na mais dolorosa ignorância – tudo num texto carregado de (boa) poesia.

“Desta vez, embora presente, o homoerotismo não é o carro-chefe da história”, diz Moreno. “É uma história de amor incondicional, contada numa roupagem híbrida, ora épica, ora dramática. De início há um bloco de narrativa que, aos poucos, vai desdobrando em cenas, ganhando contorno dramático, uma outra atmosfera. A idéia era brincar com diferentes formas de narrativa e o desafio era descobrir como criar isso no palco”, diz Moreno.

Um dos temores do autor residia justamente na presença da ´cor local`, tanto na ambientação, quanto na prosódia dos personagens. “Eu queria trazer o regionalismo sem cair no pitoresco. Numa peça na qual a crueldade dá o tom era preciso que ela não ficasse encoberta pela sedução do típico. E ninguém melhor do que Márcio Aurélio para escapar disso, claro, sem eliminar a cor local”, argumenta o autor. “Ninguém melhor do que ele , mistura de Piraju ( interior de São Paulo, terra natal do diretor) com Alemanha (onde ele dirigiu vários espetáculos).

É mesmo bastante interessante a forma como Márcio Aurélio leva ao palco a ´cor local`, por exemplo, na prosódia dos personagens. Os atores, nos momentos em que deixam o papel de narradores, optam pelo sotaque sertanejo – traduzido por uma fala lenta, gutural, de consoantes fortes – somente numa ou noutra frase. O público compreende que os personagens falam daquele jeito o tempo todo, ainda que os atores não façam isso. Tal recurso a um só tempo revela as diferenças culturais e evita desviar a tenção do que no comportamento e nos sentimentos dessas pessoas é absolutamente universal.

Outro recurso bem empregado é o da projeção que, por si só onírico, curiosamente funciona no espetáculo como elemento antiilusionista. A projeção traz para a cena o casebre nordestino, mas no entanto evita a imagem pieguas do `amor numa casinha de sapé`. Não há sentimentalismo barato mesmo nos raros e saborosos momentos de (sutil) idílio amoroso. Segundo Márcio Aurélio, o espetáculo vem sendo trabalhado desde maio. O resultado desse longo tempo de maturação é visível no palco .

“ É muito interessante a forma como Moreno domina o instrumental disponível para construir um texto extremamente contemporâneo. Nessa peça ele trata da relação entre o privado e o público de uma forma muito pertinente” , comenta Márcio Aurélio. Ele aponta como qualidade do autor a capacidade de abrir espaço para que o público faça descobertas, entre elas a de seu próprio preconceito. “Às vezes permos de vista a idéia de teatro como rito, capaz de organizar de outra forma as dimensões de espaço e tempo, de interferir nos sentidos, ou de organizar os sentidos para aguçar a percepção.

Por isso considero importante o surgimento de um dramaturgo com disponibilidade para fazer poesia em cena”, conclui o diretor.